A inteligência artificial generativa — como os chatbots, assistentes virtuais e sistemas de resumo automático — impressiona por sua capacidade de responder perguntas, gerar textos e até manter conversas coerentes. Mas, no fundo, ela não entende nada do que faz. Isso pode soar paradoxal: como algo que não compreende pode produzir sentido? A resposta está em como a IA simula a semântica, ou seja, o significado das palavras e das relações entre elas.
O que a IA faz (e o que ela não faz)
A IA não pensa, não sente e não tem consciência do mundo. Ela não entende o contexto em que você está, nem o impacto emocional das palavras. O que ela faz é reconhecer padrões estatísticos em enormes volumes de dados. Ao analisar bilhões de textos, a IA aprende que certas palavras aparecem juntas, que frases seguem determinadas estruturas e que perguntas geralmente são seguidas de respostas.
Imagine um papagaio superinteligente, que ouviu milhões de conversas e sabe repetir frases apropriadas para cada situação — mas sem saber o que está dizendo. A IA é esse papagaio, só que com algoritmos sofisticados.
Semântica: o segredo do funcionamento
A chave para esse “entendimento” está na semântica. A linguagem natural — a forma como falamos e escrevemos — é carregada de significado. Quando usamos palavras, estamos transmitindo ideias, sentimentos, intenções. A IA, porém, não entende o sentido dessas palavras; ela simula o entendimento ao identificar padrões de uso.
Por exemplo, se você perguntar “Qual a capital da França?”, a IA já viu milhões de exemplos em que “capital da França” aparece junto de “Paris”. Ela não sabe o que é uma capital, nem o que é França, nem o que é Paris. Mas reconhece que, estatisticamente, essa é a resposta esperada.
Antes da IA, a web já era semântica
Muito antes dos algoritmos generativos, a web já precisava organizar o sentido dos conteúdos. Sites, bibliotecas digitais, sistemas de busca — todos dependem de taxonomias, metadados, vocabulários controlados, menus e filtros. Essa organização é o que permite que humanos encontrem informações relevantes.
A Arquitetura da Informação nasceu justamente para dar sentido ao caos digital. UX designers, bibliotecários, arquivistas e estrategistas de conteúdo criaram mapas, categorias e relações visuais para facilitar a navegação e o entendimento. Ou seja: semântica aplicada à prática.
IA: organizando sentido em números
A IA generativa faz algo semelhante, mas no mundo dos números. Ela transforma palavras em tokens (pequenas unidades de texto), que viram vetores em um espaço matemático. Palavras com contextos semelhantes ficam próximas nesse espaço vetorial. Assim, “documento”, “arquivo” e “registro” ficam agrupados, não porque a IA entende o significado, mas porque reconhece que aparecem em contextos parecidos.
Essa organização vetorial é o que permite à IA gerar respostas plausíveis, sugerir sinônimos e até criar textos coerentes.
Reconhecimento de entidades: substantivos como âncoras do sentido
Um dos truques mais poderosos da IA é o reconhecimento de entidades: pessoas, lugares, organizações, eventos. Isso é fundamental porque substantivos são as âncoras do nosso entendimento do mundo. Quando a IA identifica que “Ditadura Militar” é um evento histórico ou que “Arquivo Nacional” é uma instituição, ela está fazendo algo muito próximo do trabalho de catalogação feito por bibliotecários e arquivistas.
Tesauros x Embeddings: o velho e o novo mapeamento semântico
Na Ciência da Informação, tesauros são usados para mapear relações entre termos: sinônimos, hierarquias, associações. Na IA, usamos embeddings — representações matemáticas que organizam palavras pelo contexto estatístico.
Podemos pensar nos embeddings como tesauros automatizados, capazes de aprender e se adaptar a partir dos dados. Mas isso traz desafios: os embeddings refletem os dados com os quais foram treinados, incluindo seus vieses, lacunas e limitações.
Cada IA tem sua própria semântica
Se cada sistema de IA é treinado em um conjunto diferente de dados, cada um constrói sua própria versão do sentido. Isso significa que a semântica não é mais universal, mas contextual e dinâmica. Assim, cada IA é, de certa forma, um novo sistema documental — que precisa ser auditado, curado e compreendido.
Curadoria vetorial: o novo papel dos profissionais da informação
O trabalho de organizar, revisar e dar sentido aos dados não desaparece — ele muda de camada. Antes, criávamos categorias, vocabulários e classificações. Agora, precisamos entender como os modelos matemáticos organizam o sentido e como podemos auditar, corrigir e orientar esses sistemas.
A IA só “entende” porque humanos — designers, bibliotecários, cientistas da informação — estruturaram relações semânticas antes. Ou porque modelos foram treinados em grandes volumes de texto cuidadosamente organizados.
Quem media o sentido?
No fim das contas, a IA não entende nada — mas simula muito bem. E é aí que entra nossa responsabilidade: mediar, auditar, curar e garantir que o sentido produzido por máquinas continue servindo aos humanos.